Iniciativas que transformam: docente de Arquitetura e Urbanismo produz documentários com pessoas que modificam a realidade de periferias da América Latina
Projeto de mídia participativa “Cidades Invisíveis, Pessoas Incríveis” utiliza ferramentas audiovisuais para divulgar e estimular práticas solidárias e transformadoras na sociedade.
Favela, palafita, ressaca, invasão, cortiço, viela, assentamento, baixada, loteamento. Há uma variedade de palavras para nomear áreas periféricas, locais onde pessoas moram em condições precárias, muitas vezes sem acesso regular a serviços básicos como saneamento, fornecimento de energia, coleta de lixo ou abastecimento de água. Dados da Organização das Nações Unidas (ONU) apontam que um bilhão de pessoas vivem em favelas e moradias precárias. No Brasil, cerca de 16 milhões de brasileiros vivem distribuídos em 11.403 favelas, segundo uma prévia dos dados do Censo Demográfico 2022, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no início de 2023.
A vida na periferia de cidades da América Latina é a realidade de Raimundo de Moraes Santos, José Elenildo da Silva, Gilson Rodrigues, Leticia Herrera e Francisco Antônio de Oliveira, nomes comuns que, em uma primeira leitura, facilmente podem fazer lembrar de algum amigo, familiar ou conhecido, aquela pessoa que a gente encontra nas esquinas da vida. Mas as cinco pessoas citadas nesta matéria [perfil no final do texto], além de serem moradores de áreas periféricas, têm outra coisa em comum: são líderes comunitários que resolveram “arregaçar as mangas” e agir em prol de suas comunidades, buscando transformar as suas vidas e as das pessoas ao redor.
A história de vida e como eles atuam para melhorar as condições sociais nas comunidades onde vivem são retratadas em documentários curtas-metragens produzidos dentro do Projeto “Cidades Invisíveis, Pessoas Incríveis”, que divulga e estimula práticas solidárias e transformadoras na sociedade por meio de produtos audiovisuais. Idealizado pela docente do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Amapá (Unifap), Profa. Dra. Bianca Moro de Carvalho, o projeto busca dar voz e visibilidade a pessoas que representam uma parcela importante da população: os líderes comunitários.
A docente de Arquitetura e Urbanismo, Profa. Dra. Bianca Moro, é a idealizadora do projeto. (Foto: Arquivo pessoal).
“Os documentários surgiram dentro de minha proposta de programação de estágio internacional de pós-doutorado realizado na Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo, que foi uma bolsa da Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior] para realizar estágio de um ano. Como a bolsa exigia uma proposta internacional, decidi fazer um documentário que mostrasse três diferentes realidades na América Latina de precariedade urbana. Para isso articulei as filmagens e entrevista de lideranças comunitárias em três lugares distintos: Macapá, na Amazônia brasileira; Cidade Juarez, no México; e Paraisópolis, em São Paulo”, explica a Profa. Dra. Bianca Moro.
A partir das vivências das práticas solidárias dos líderes comunitários, os documentários abordam temas conectados ao direito à cidade, inclusão social e superação de dificuldades, buscando sensibilizar o público a refletir sobre assuntos de grande importância para a construção de uma sociedade solidária, empática e resiliente.
“Os documentários duram cerca de 10 a 15 minutos e revelam as condições de vida da população da América Latina que vive em condições de precariedade urbana e, em especial, pessoas que são agentes de transformação nas comunidades em que vivem. Por exemplo, no município de Santana (AP), o Sr. Raimundo Moraes é líder em uma comunidade ribeirinha e transformou sua própria casa em sede dos moradores para atender às necessidades da comunidade. Um exemplo de iniciativa que se tornou elo entre a comunidade e as autoridades locais”, observa a idealizadora do projeto.
Mídia participativa
Os documentários são produzidos utilizando a metodologia da mídia participativa, uma forma de pesquisa documental e de produzir espaços de inclusão e visibilidade para as populações que vivem em áreas periféricas por meio do audiovisual e da participação direta das comunidades nos filmes.
A Profa. Dra. Bianca Moro entrou em contato com a metodologia em 2017, quando ganhou a Bolsa Presidente Nestor Kitchner para fazer um estágio na The New School, em Nova York (EUA). Lá ela conheceu o Professor Peter Lucas, que já realiza cursos e produzia documentários nas favelas do Rio de Janeiro com essa metodologia. A convite da Prof. Dra. Bianca Moro, o Professor Peter Lucas veio ministrar, neste mesmo ano, um workshop para os acadêmicos de Arquitetura e Urbanismo da Unifap sobre o tema.
“No momento que ele veio aqui, comecei a usar essa metodologia para trabalhar com o audiovisual com nossos alunos, dentro da matéria de Urbanismo, porque estava muito difícil, por causa da violência, fazer o trabalho de passar dias e dias dentro das ressacas aplicando questionário para depois fazer atividade de projeto dentro de sala de aula, então a partir de 2017 eu adotei o audiovisual como uma forma de continuar dentro das ressacas”, explica a idealizadora do projeto.
Os alunos produziram documentários que retrataram a realidade das ressacas de Macapá, que foram apresentados e avaliados pelo Professor Peter Lucas. A visita dele ao estado também rendeu um novo filme, realizado com o apoio do Ministério Público do Amapá (MP-AP), sobre as habitações precárias da cidade, dentro do Projeto “Housing Problems” que ele já desenvolvia em outras áreas periféricas ao redor do mundo.
“[Professor Peter Lucas] ficou entusiasmado e nos convidou pra fazer parte do projeto dele chamado ‘Housing problems’, que filma versões do primeiro filme falado nas favelas, em 1935, que se chamava Housing problems. Ele pegou esse filme original e resolveu fazer em várias versões ao redor do mundo, em Hong Kong, no Rio de Janeiro, em Nova York, e quando ele veio decidiu fazer a versão em Macapá e deu certo, aí ficou o ‘Housing Problems Macapá’, que foi lançado em 2020 e começou a dar uma dimensão internacional para as ressacas”, complementa a Profa. Dra. Bianca Moro.
Rede colaborativa
A escolha das lideranças comunitárias que foram entrevistadas foi feita a partir da indicação de uma rede de colaboradores do projeto que já conheciam a atuação dos líderes, com exceção dos que vivem nas cidades de Santana e Macapá, no estado do Amapá, pois a docente já havia feito outros trabalhos nas comunidades amapaenses.
“A Unifap oferece oportunidades para nós, professores, nos atualizarmos e estabelecermos novas redes de pesquisas. Assim, decidi levar para o pós-doutorado o trabalho de mídia participativa que desenvolvo desde 2017 com as comunidades ribeirinhas do Amapá. A produção dos documentários conta com voluntários, então articulamos com a rede de pesquisa que tenho construído nesses 20 anos e também com amigos, e verifico propostas de pessoas que buscam o site para participar do projeto”, informa a Profa. Dra. Bianca Moro.
A idealizadora do projeto destaca que o “Cidades Invisíveis, Pessoas Incríveis” conta com a participação voluntária de profissionais de diversas áreas como arquitetura, urbanismo, cinema e fotografia.
“Por isso é importante ressaltar que contei com a supervisão de minha orientadora de pós-doc, Dra. Angélica Benatti Alvim, diretora da FAU-Mackenzie, e outros profissionais para filmagem, e edição e co-direção como a pesquisadora a socióloga Dra. Mariana Contreras Saldaña e do arquiteto e mestre em Arquitetura William Santiago. Além do apoio dos professores Afonso Celso Vanoni de Castro, Celso Aparecido Sampaio e Stefania Dimitrov, todos professores da Universidade Presbiteriana Mackenzie.”, elenca a Profa. Dra. Bianca Moro.
Próximos passos
Novos vídeos documentários já estão sendo produzidos. No ano de 2022 o projeto realizou uma parceria com o fotógrafo Guy Veloso, que filmou no sertão da Bahia com Chico Maleiro, que desenvolve trabalho social na cidade de Bom Jesus da Lapa na área da educação, ensinando jovens a desenvolver um oficio no setor de belas artes.
“Recentemente foi feito um documentário no município de Santana (AP), na comunidade ribeirinha do Elesbão, que trabalho desde 2017. Agora estamos editando um filme que foi gravado recentemente na Cidade do México com apoio da doutora em arquitetura Selenne Galena”, conta a Profa. Dra. Bianca Moro.
O “Cidades Invisíveis, Pessoas Incríveis” está dentro das atividades do projeto de pesquisa “Assentamentos precários na Amazônia Periférica: estratégias para transformação do urbanismo e exercício da cidadania”, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Unifap em 2022.
O site oficial do projeto é www.cipesin.com. “Cidades Invisíveis, Pessoas Incríveis” também está no Instagram (@cipesin_) e no YouTube (@cidadesinvisiveispessoasin8584).
Confira quem são os líderes comunitários já entrevistados:
Mais conhecido com Senhor Moraes, é um líder comunitário que dedica sua vida ajudando a comunidade ribeirinha que vive em frente ao Rio Amazonas, no bairro do Elesbão, localizado no município de Santana, no estado do Amapá. Ele transformou sua própria casa na sede da Associação de Moradores do Bairro do Elesbão (Amobel), onde atende a comunidade todos os dias orientados-os na busca de soluções para as dificuldades diárias. Também é ele que procura as autoridades locais para resolver os problemas da comunidade.
É um amazônida que há 40 anos realiza serviços comunitários no bairro do Congós, na cidade de Macapá (AP), onde existe uma imensa área de moradias de palafitas conectadas por pontes de madeira. A falta de emprego, moradia digna e serviços básicos é um desafio diário na vida dos moradores das áreas de ressacas.
Vive em Cidade Juarez, no México, em um Conjunto de Interesse Social construído pelo governo mexicano e que apresenta características de assentamento precários. Leticia é uma ativista dos direitos humanos em uma cidade de imenso simbolismo, pois está separada dos Estados Unidos por um imenso muro.
Conhecido nacionalmente como “Embaixador de Paraisópolis”. É um dos idealizadores do G10. Seu trabalho destaca-se pela liderança e mobilização social fortemente organizada. Responsável pelo salto de inovação e crescimento que colocou Paraisópolis, na capital paulista, como a comunidade mais bem organizada com iniciativas para diminuir o impacto da pandemia da Covid-19.
Nascido no sertão da Bahia, tem importante trabalho social em sua terra natal: transformar a arte em instrumento de inclusão na vida dos jovens. Em sua própria casa ele criou um centro cultural onde são realizados saraus musicais e aulas. O baiano também vive rodeado pelas esculturas, peças artesanais de madeira, ferro, vidro, cabaças e materiais recicláveis que ele e sua família fabricam.
*Fotos: Giorgio Moura dos Santos e site do projeto.